O Ganges e a Sabedoria da Incerteza.
A magia do Ganges demorou-me algum tempo a compreender. O
seu sentir foi mais fácil e quase imediato da primeira vez que o vi, quase há
10 anos atrás. É impossível não sentir a sua força e poder na época da monção, e a sua
serenidade e clareza na época seca . Durante o dia é fácil perceber a sua importância
vital para todo o Norte da India, nas culturas que rega e no alimento que trás.
Quando a noite cai o Ganges traz a sua magia e os Indianos mostram-lhe a sua
devoção e gratidão, fazendo cerimónias de fogo (aarti) e largando flores,
incensos e velas acesas na sua corrente. Voltei a assistir a uma destas
cerimónias esta semana. Aquele momento do fim do dia, com a música devocional num
crescendo, o cheiro a incenso e flores, e o rio iluminado de velas que descem a
corrente levando desejos, preces, agradecimentos....momentos que nenhuma
máquina consegue captar. Resta-me como costumo fazer, usar a mente para captar
o momento e esperar que perdure em mim esta imagem , para lá regressar sempre
que queira, onde quer que esteja. Momentos em que experimento Paz e Gratidão
por me ter sido dada a oportunidade de estar ali.
O Ganges é para a tradição Hindu mais uma forma de Deus
(Ganga Ma, ou Mother Ganga), e como tal, estar na sua presença é um privilégio,
algo digno de ser agradecido. Por isso há várias peregrinações a lugares da India
onde ele passa, como Varanasi ou Rishikesh onde estou. Os três mergulhos nos
Ganges são um desejo de qualquer devoto que se queira sentir abençoado “no colo
de Deus”. Eu também me sinto abençoada
na sua presença. Sinto a sua água gelada purificar o meu corpo e a minha mente,
e sinto a forte energia espiritual que aqui corre há tantos e tantos anos, e
para a qual tantos Mestres, Yogis e Gurus contribuíram.
Mas tal como comecei estas linhas , demorei a compreender a sua magia.
Talvez pela razão de que o
Ganges é também uma metáfora da vida, que se vai abrindo a cada etapa assim
como o rio se vai expandindo até ao mar. E tal como a magia da vida , é preciso
vivê-la para se compreender. Não basta lê-la, estudá-la, falar sobre ela. Tem
de ser vivida.
Tem de ser
experimentada a força da sua corrente e entender que há que segui-la. Há que se
deixar ir, pois nada é mais ingrato e inútil que tentar nadar contra uma
corrente forte. Lutar contra a corrente é uma luta perdida, uma perda de tempo,
só serve para nos cansar, tirar energia
e, em último caso matar. A corrente da Vida é mais forte e ela sabe sempre
para onde nos leva. Porque tantas vezes nos agarramos com unhas e dentes às margens
do rio? Sem acreditar que o lugar para onde a corrente nos levaria é melhor do que aquele onde agora estamos? Por que o desconhecido e a entrega ao rio da vida
é sempre tão resistente?
E se há momentos em que somos apanhados na corrente e só nos
resta largar a margem e deixar-nos ir, outros há, em que a corrente é fraca e a
água parada. E nesses momentos não
precisas fazer mais nada senão desfrutar
do momento. Deixa que a corrente volte e indique a direcção. Até lá, aproveita
o momento de água calma para mergulhar mais fundo, ou simplesmente observar a paisagem à tua volta.
Mas quer o rio corra forte, quer as águas estejam paradas
ele é o mesmo. Tu és o mesmo. Sempre. Nos momentos de calma da água tranquila, e
nos momentos difíceis da água agitada.
Nos momentos de alegria , e nos momentos de tristeza. Tu és sempre o mesmo, só
a corrente muda. Tu estás lá sempre, o mesmo centro, do início ao fim da jornada.
Deixa então o rio correr, sem o querer controlar, sem
certezas do destino, da viagem. Sem saber se vais directo ou se vão haver paragens. Sem saber quando vais rápido ou devagar. Se vais só ou se tens companhia. Simplesmente vai, acreditando e confiando, sabendo que tens um centro que não muda. Conhece-te da melhor forma, as tuas forças e fraquezas, os dons e as sombras. Só este conhecer te pode ajudar a juntares-te da melhor forma, à corrente do Rio, à corrente da Vida. E desfrutar da viagem.
Possamos aprender a navegar na sabedoria da Incerteza.
Jaya Ganga Ma